sábado, 16 de maio de 2020

A guerra pelo poder em Aurora (CE): Cândidos x Leites e o ataque ao coronel Teixeira em 1914.


Aspecto da rua do Comércio. Fonte: site do IBGE.

No ano de 1908 chefiava a pequena vila d’Aurora, antiga Venda, o coronel Antônio Leite Teixeira Neto (Totonho Leite ou Totonho do Monte Alegre) – intendente municipal entre 1907 e 1908. Predominava, na época, o poderio estabelecido por Domingos Leite Furtado, chefe absoluto de Milagres e de grande prestígio ante os demais potentados do Cariri cearense, dentre eles, José Inácio do Barro, um de seus aliados principais.
surgindo desacordos entre os chefetes citados, tendo em vista a demarcação das terras do sítio Coxá, dada pelo padre Cícero Romão Batista, proprietário, a Floro Bartolomeu da Costa, esta incumbência, Cândido Ribeiro Campos, ou Cel. Cândido do Pavão, homem da confiança de Domingos Furtado – assim como do Pe. Cícero – foi aproveitado para desabafo, nesta ocasião. Acentue-se já ser desafeto do coronel Teixeira Neto, Cândido do Pavão, citado.
Passava-se o mês de dezembro de 1908, quando o Cel. Teixeira Neto foi avisado sobre um grupo de cangaceiros, que em número estimado de 400, guiados por Cândido, comandados e fomentados por José Inácio do Barro e fornecidos por Domingos Furtado, fazer-lhe ia a deposição na vila d’Aurora.
Não dispunha Teixeira Neto de elementos suficientes para reação (embora tivesse recebido do Governo do Estado ordem para receber destacamentos de Lavras e Iguatu), resolvendo aconselhar a população a abandonar a vila, o que fez rapidamente, parte dos residentes, devido à aproximação da horda de celerados. Todos os seus haveres, assim como os da população ficaram efetivamente a mercê dos bandidos.
Neste mesmo dia (23 de dezembro de 1908), pelas quatro horas da tarde, foi invadida a vila.
Os algozes, não encontrando os inimigos para resistência, ordenaram logo proceder ao saque nas casas comerciais, sendo as principais, as seguintes: Cícero Calixto de Araújo, Sebastião Alves Pereira, Emídio Cabral, José Cabral, Manoel de Barros e a do coronel Paulo Gonçalves Ferreira, sendo os prejuízos avaliados em centenas de contos de réis.
No dia seguinte, data em que as famílias estariam reunindo-se para comemorar o Natal, os cangaceiros arrombaram quase todas as residências, roubando tudo o quanto puderam conduzir. Cristaleiras, mesas e cadeiras foram quebradas e atiradas às ruas, sendo depois incendiadas, gerando na pequena urbe, cenário desolador.
Após o saque da vila, foram divididos os cangaceiros em alguns grupos, tendo à frente de cada um, pessoa da confiança de Cândido: Jose dos Santos, Raimundo dos Santos e Joaquim dos Santos, seus cunhados; Ernesto da Pamonha, José Dantas, e os irmãos Paulinos (João, Antônio e Zinho) seus sobrinhos, seguindo cada um o destino apontado.
Em tempo: Raimundo dos Santos, citado, fora o mesmo que, em certa ocasião, viu seu sobrinho João Paulino, motivado por insatisfação, desfechar-lhe três tiros de revolver, fazendo-o tombar por terra. Por grande felicidade conseguiu escapar da morte Raimundo dos Santos, tendo recebido como sequela, uma lesão na perna que o deixou aleijado.
Para o sítio Monte Alegre, propriedade do Cel. Teixeira Neto, na passagem da antiga estrada que liga o município ao Estado da Paraíba, seguiu o grupo de Raimundo dos Santos que, ali chegando, comete grandes depredações, incendiando armazéns de cereais, a bolandeira, cercados e a casa de residência.
Para o sítio Gerimum, propriedade do coronel Antônio Leite Gonçalves (aliado político e sobrinho de Teixeira Neto), seguiu o grupo de José dos Santos, que como o outro, praticou as violências já citadas. No Sítio Barreiro, também de Antônio Leite Gonçalves, se apoderaram do gado ali existente, conduzindo a boiada para o consumo próprio, sendo de notar, conforme consta em O Ceará (Fortaleza, 25 de agosto de 1928, p.4), roubo de grande quantidade de fumo, que foi retirado do armazém e transportado ao Sítio Taveira, o qual, depois, foi enviado à venda para a cidade de Cascavel.
Os demais grupos seguiram para as propriedades Jitirana e Japão, ainda de Antônio Leite Gonçalves, as quais foram também saqueadas e incendiadas. A propósito, o citado Antônio Leite Gonçalves era o primeiro filho de um total de 16 do único casamento do coronel Barnabé Leite Teixeira com Maria Leite de Figueiredo (Maria Joaquina do Amor Divino). Barnabé, morador no sítio Barro Vermelho e falecido em 1903, era irmão dos coronéis Antônio Leite Teixeira Neto e Manoel Teixeira Leite (Cel. Teixeira) – citado adiante – e foi uma das figuras sociais e políticas de maior envergadura da história de Aurora; antigo delegado municipal (1862) e presidente da Câmara da vila (1890).
Voltando ao ataque de 1908, finalmente foram saqueadas as propriedades de Joaquim Miguel (Joaquim Gonçalves Ferreira), Manoel Carneiro Guerra e outros, cujos prejuízos foram calculados em mais de trezentos contos de reis.
Figura de destaque na política local dentre os deportados por Cândido, logo que assumiu a chefia do município, estava o major Manoel Gonçalves Ferreira (o segundo, de três com o mesmo nome), irmão do coronel Paulo Gonçalves. O mesmo veio a se retirar para o Amazonas, onde chegou ainda a atuar na política, vindo a falecer ausente da família.
Decorreu a truculenta gestão de Cândido Ribeiro Campos, aos moldes dos governos municipais do período coronelístico no Nordeste do Brasil, até 1914, época em que rebentou a ruidosa revolução de Juazeiro. Com a mudança no governo do Estado após a queda de Franco Rabelo, foram entregues os destinos de Aurora ao coronel Manoel Teixeira Leite (Cel. Teixeira), irmão de Antônio Leite Teixeira Neto. Atente-se ao fato de o Cel. Teixeira ter sido o primeiro prefeito do município, já que, a partir de 9 de outubro de 1914, por força da Lei Estadual nº 1.794, foi extinta a função de intendente, passando, em substituição, a existir a figura do prefeito municipal.
Cândido, insatisfeito com a posse e administração do coronel Teixeira, estudou meios de galgar novamente o poder. Julgando que os troféus da vitória fossem ainda o bacamarte, reuniu a parentada e concertou planos.
Decorreram-se alguns dias de 1914, quando na madrugada de 11 de julho, a população da pequena vila d’Aurora foi novamente despertada por fuzilaria terrível. Era o ataque dos Cândidos e santos (Paulinos), à residência do coronel Teixeira, que não oferecendo resistência, tratou de fugir, e saltando uma janela, recebeu ferimento de bala de rifle no pé direito. Com a fuga de Teixeira, foi invadida a casa, ocasião em que fazia uso de arma de fogo a sua filha, Antônia Leite, reconhecida, logo depois, pelo ato de bravura. Neste ínterim, chegando grande parte dos parentes, houve luta armada, e depois de cerca de quatro horas, retiraram-se em debandada, os invasores.
Quanto à casa invadida, ainda hoje está erguida, apesar de desfigurada a fachada. Localiza-se na praça da Matriz (antiga rua do Quadro), centro de Aurora e lá funciona um restaurante (Churrascaria do Regivaldo). Este imóvel, que se avizinhava à esquerda com a casa de José Leite Teixeira e à direita com a casa do Professor Luiz Gonçalves Maciel foi adquirida por Manoel Teixeira a Hermenegildo de Sá Cavalcante (o primeiro deste nome) e sua mulher Dulce Emídia de Macêdo, pelo valor de duzentos mil réis, conforme registrado no livro de notas do Cartório da vila d’Aurora (Livro 1, 1890-1892, p.12-16), assinado pelo tabelião Casemiro Bezerra de Maria. No instrumento de escritura pública datado de 16 de outubro de 1890, aponta-se:

“(...) a compra de uma casa de morada encravada no patrimônio do Senhor Menino Deus da Vila d’Aurora, feita de tijolo e encoberta de telhas, com três portas e uma janela de frente, localizada na Rua do Quadro da mesma vila da Aurora, Comarca de Lavras, Estado do Ceará (...)”.

            Outros desentendimentos experimentaram Cândidos e Leites durante a gestão também truculenta do Cel. Teixeira em Aurora (1914-1919). Embora líder do Executivo, Teixeira amargou serrada oposição, já que atuava como presidente da Câmara Municipal, neste período, Manoel Ribeiro Campos, irmão de Cândido. Além do presidente, a Câmara era formada por mais quatro vereadores que se identificavam como correligionários dos Cândidos: José Cabral de Almeida (vice), Rubem Arrais Maia (secretário – que substituíra o também aliado Antônio José Ferreira), Raimundo Bernardo de Souza e Afonso Monteiro Damasceno. Apenas os vereadores Antônio Bezerra dos Santos e Raimundo Ferreira de Lira eram aliados do Cel. Teixeira.
Como prova disto, aponta-se o que ocorreu na sessão extraordinária da Câmara de Aurora de 30 de março de 1915, em que informaram ao presidente do Estado, por meio de ofício, sobre o “procedimento arbitrário” do prefeito Cel. Teixeira, que não permitia a colaboração da Câmara no “destino e engrandecimento do Município”, cientificando, o referido presidente, ser o cidadão Manoel Teixeira Leite “em tudo contrário aos lampejos de prosperidades, tão necessários aos habitantes da terra”.
Sete meses depois (21 de outubro do mesmo ano), em ata de seção extraordinária da Câmara, Manoel Ribeiro Campos deixa escrito sobre a ausência, à reunião, do prefeito Manoel Teixeira Leite, que fora convidado a tratar dos atos de sua gestão no ano anterior, assim como da elaboração da proposta de orçamento para o ano seguinte (1916). Afirma o dirigente da Câmara, ter o prefeito se “esquivado de cooperar para o engrandecimento e boa organização das coisas”.
Terminado o mandato do Cel. Teixeira, assumia como prefeito Antônio Landim de Macedo, ocasião em que saiam do anonimato em Aurora, os Macêdos, aliados dos Leites e Gonçalves, para frequentarem em regime de rodízio, altos cargos na administração do município, tanto de indicação do governo estadual, como de escrutínação.  
Findos os dois mandatos citados, Cândido Ribeiro Campos, obstinado na política, por intermédio de Floro Bartolomeu, deputado federal eleito em fevereiro de 1921, com sua ajuda, inclusive, no município, conseguiu novamente a Prefeitura de Aurora, governando-a de 1921 a 1926, mas perdendo a eleição subsequente para José Gonçalves Leite, candidato dos Leites Gonçalves apoiado também pelos Arrudas e Macêdos. Os velhos aurorenses, mais em dia com os acontecimentos passados da terra de origem, afirmam terem sido numerosos os assassinatos, roubos e demais crimes durante o período da segunda administração de Cândido, sem que fossem tomadas muitas providências.
Dentre os crimes de homicídio que ficaram impunes, cita-se o de José Paulino dos Santos (Zim), sobrinho de Cândido, que assassinou o primo Pedro Saraiva dos Santos na estrada do sítio Carro Quebrado em 1925, e que ficou somente em corpo de delito, o processo, tendo sido fechado, somente na administração de José Gonçalves Leite, quando exerciam os cargos de juiz e delegado o Dr. José Garrido e o tenente Caminha, respectivamente.
Por fim e fazendo alusão ao ano anterior de 1917, observou-se em Aurora, que por questões de terra pendentes e “para não incomodar a justiça”, decidiram, alguns membros da família Santos, resolvê-las, amparados pela lei tradicional do bacamarte, tendo sido este, outro episódio tremendo. Travaram luta entre si, resultando três mortes, sendo: o velho José dos Santos, com 80 anos de idade, José dos Santos (José da Bestinha) e um outro membro do clã, sobre o qual falaremos em momento oportuno.

Juazeiro do Norte, Ceará, 15 de maio de 2020.

João Tavares Calixto Júnior

Universidade Regional do Cariri – URCA
Instituto Cultural do Cariri – ICC
Academia Lavrense de Letras – ALL
Academia Brasileira de Letras e Artes do Cangaço - ABLAC




quarta-feira, 4 de maio de 2016

A Lavras Bicentenária






Município que emergiu da busca incessante pelo ouro, lugarejo que logo se fez paragem pelo insucesso da lavra, resolveu, São Vicente Ferrer, proteger a aldeota que logo se constituiria em império verdadeiro em meio ao Salgado. Parte do Ceará de maior predisposição a lutas e guerras recebeu de seu padroeiro guerreiro a inspiração para triunfos, sabendo suportar, desde sua epigênese, os desfechos de episódios marcados pela dor e pela glória.
Palco de fortes cenas patrióticas, logo contemplou o desejo pela causa nobre da independência, e viu ecoar, a partir das ideias e ações de seu primeiro filho herói – o Padre José Joaquim Xavier Sobreira – os efeitos que logo se perpetuariam pela escrita de crônica esplêndida da história deste País.
Em suas pequenas ruas, puerperais, cenas bárbaras. A destruição do pelourinho, e a bandeira da independência, hasteada como um “putsch” à monarquia no Brasil foram símbolos da coragem e da luta instaladas e bem representadas no lugar. Logo a isso, a onomatopeia tristonha ouvida pela prisão dos heróis da Confederação do Equador, na pequena e ainda erma Vila de São Vicente das Lavras, foi expressa por Frei Caneca, sublevando os heróis e soerguendo a memória desta terra.
Foram os resquícios dos capítulos iniciais que ornamentaram com toda a opulência a história de Lavras da Mangabeira. Formou-se esta trajetória pela vocação heroica de seus filhos. O “heroica” aqui usado é pertinente, pois é arquetípico o que legou muitos deles. É grande a contribuição dos filhos de Lavras ao Mundo dos humanos. Ao imaginário também; que os digam o grande carneiro de ouro encantado da enigmática e maravilhosa gruta do Boqueirão e a mula-sem-cabeça, que escaramuçava nas noites de lua cheia na estrada do Riacho do Rosário. Contos do Padre Luiz do Calabaço.
 Notícias das “guerras” em Lavras ecoaram muitas vezes através dos jornais pelo Brasil a fora. Foi assim em 1907, em 1910 e em 1922. Notícias do êxito intelectual de seus filhos, marcadas notadamente por ordenações sacerdotais, formaturas acadêmicas, exposições artísticas e publicações literárias que se configuraram como verdadeiros clássicos à literatura nacional representaram, e representam ainda, a veia cultural que se estabelece e se fortifica analogamente à vocação para os combates dos ancestrais dos lavrenses.
Logros do passado, auspícios do presente. Constitui-se assim uma vida de 200 anos. Seriam 200 os motivos para cumprimentos? Os engenhos de rapadura, os banhos no gueguéu, os carnavais tradicionais, a beleza do Boqueirão, a juventude universitária, a excelência da formação agrícola, as quermesses de São Vicente, o ouro branco de Amaniutuba, o Rosário de Quitaiús, a fé do povo de São José...  
É esta terra, outrora pedaço de Icó, e que fez emergir Várzea Alegre e Aurora, Baixio, Umari e Ipaumirim que agora se faz bicentenária e é glorificada! É parte que o Ceará se orgulha e que dignifica a Nação! É pedaço de Cerrado e Caatinga no chão do Nordeste do Brasil que diversifica a essência e acrescenta a cada ano, a sua gente, atos novos de grandeza, da resistência a Lampião, à solidariedade à pequena Valentina. É a esta Lavras dos Buxaxás, dos Quitariús, dos Calabaças, a esta Lavras da Mangabeira, do Arrojado e do Iborepi, de Sinhá d’Amora e Filgueiras Lima, de Joaryvar e de Cabral da Catingueira, que se voltam todos os demais brasileiros, neste dia 20 de maio de 2016, para enaltecer e outorgar todas as homenagens, diante da relevância histórica que se traduz na mais genuína gratidão de cada um de seus filhos.


Prof. João Tavares Calixto Jùnior
Juazeiro do Norte, Ceará

Abril de 2016.

sábado, 28 de março de 2015

Novas considerações sobre o assalto a Apodi (1927)





Razões do cerco – Júlio Porto e as três cartas – José Cardoso e Mundoca Macedo – Ipueiras, a Eldorado das tramas



            Na madrugada de 10 de maio de 1927 a cidade de Apodi, no Rio Grande do Norte era invadida por bandoleiros comandados por Massilon Leite. Era político o intento, e na tramoia, orquestrando-a, o mandão provisionado de Missão Velha. Relatos dos cangaceiros Mormaço e Bronzeado evidenciam o planejamento e o suporte dado ao grupo por Izaias Arruda de Figueiredo (Veja-se: Correio do Povo, Mossoró, 31 de julho de 1927 e O Nordeste, Mossoró, 13 de agosto de 1927).
            De certo, não seria sem motivo a sua participação, e assim o foi, atendendo ao pedido de Décio Holanda, reputado fazendeiro em Pereiro, Ceará, que se deu a conspirata. Holanda era genro de Tylon Gurgel, homem destacado na região Apodiense, agropecuarista em Pedra da Abelha, nas proximidades de Apodi. Diz-se na literatura, em concórdia de autores, sobre o comportamento atribulado de Décio Holanda. Era homem de hábitos e valores nada louváveis. Para Romero (2010), um cultivador de ódio em grau exponencial, alguém que não conseguia perdoar desafetos ou pessoas que o desagradassem. Também enfatiza e sumariza Sérgio Dantas (2005, p. 38) sobre Décio Holanda:

“Os mandões de Apodi sofriam com ruidosos ataques pessoais protagonizados por Décio e sempre que possível iam à forra. Por questões de nonada ou por uso de termo ou palavra mais contundente, o “intruso” era perseguido e sofria pesadas sanções. Em pouco, brotou profunda inimizade entre Holanda e Francisco Ferreira Pinto, Presidente da Intendência Municipal. Envolveram-se em avultada contenda política. Acirraram-se em busca de prestígio, poder, domínio. Perseguições diárias e vinditas intermináveis, invariavelmente eivadas de rancor. Décio tornou-se vítima preferencial de ataques protagonizados pelo sistema político-partidário vigente e em muito pouco perdeu espaço na comuna. Aniquilou-se. Experimentou – com pesar – forçado ostracismo. Restou-lhe, portanto, esquálido projeto de vingança. E não muito hesitou”.

            Entretanto, com pormenores, historiemos por versão que salienta a crucial participação no intento do bandido Júlio Porto (Júlio Santana de Melo), figura asquerosa, segundo Marcos Pinto (2013), que por ter a proteção do seu mentor Martiniano Porto, passou a ser conhecido por este nome.       
Enfaticamente, afirma Júlio Porto que o assalto a Apodi foi feito por ordem de José Cardoso, de comum acordo com Izaias Arruda (Veja-se: O Ceará, 27 de julho de 1928, p. 2).
Nascido em 1903, Júlio era natural da Serra do Pereiro e foi casado com Avelina Sobreira. Depois de haver trabalhado alguns anos em Mossoró, como chofer, voltou à Serra do Pereiro, como empregado de Décio Holanda. Após algum tempo mudou-se para a casa de Odilon Gurgel, sogro de Décio e residente em Pedra da Abelha, Apodi, no Rio Grande do Norte. Estava satisfeito em companhia de Odilon Gurgel, quando, em certo dia, recebeu carta de Décio, chamando-o à sua casa.
Atendendo ao convite, na casa de Décio, recebera de suas mãos três cartas que, mal sabendo, em muito alterariam a vida de sertanejos do Apodi. Seriam para Massilon Leite, José Cardoso e José Gonçalves, os dois últimos residentes em Aurora, município cearense. A empreita seria levá-las aos seus destinos.
Desincumbindo-se da aludida missão, Júlio Porto foi a Aurora. Chegando a Ipueiras, entregou a carta a Zé Cardoso, e junto, trezentos e cinquenta mil réis. Júlio afirma ter ouvido do mesmo que esperasse pela resposta. Durante a estada, três dias após ter chegado, notou vários bornais sendo levados à casa do jagunço de Ipueiras.
Decorridos mais dois dias, Massilon Leite, que a esta altura já se achava em Ipueiras e com a carta que lhe havia sido endereçada em mãos, convidou-o a ir ao Angico, morada de Mundoca Macedo, situado também em Aurora. Tratava-se de Raimundo Antônio de Macedo, filho primogênito da famanaz Marica Macedo do Tipi, apontado já, em passagens diversas, como protetor de Lampião, quando de suas temporadas com a cabroeira pela zona Sul-cearense.
Acompanhando Massilon ao Angico, Júlio Porto presenciou ali longa conversa entre aquele e Mundoca Macedo, eram detalhes sobre a trama de Apodi . De regresso a Aurora, Massilon parou em caminho no meio da noite e contou a Júlio que as cartas de que fora portador continham a combinação de um assalto armado a Apodi, e que Júlio, de acordo com as determinações de Décio Holanda, faria parte do grupo assaltante. Quis protestar contra isso, mas ouviu de Massilon uma tremenda ameaça, que o fez calar.
Desta maneira organizou-se o ataque a Apodi, que se efetuou da maneira terrífica (veja-se O Ceará, 26 de julho de 1928, p. 1-2).
Depois do assalto, tendo regressado a Aurora, Júlio Porto retorna à casa de Mundoca Macedo, a quem vendeu por 95$000 um rifle e 50 balas que lhe haviam dado para a empreitada. Efetuada a venda, retirou-se para Juazeiro do Padre Cícero, onde viria a matrimoniar-se ainda em 1927 com Adelina Sobreira. Lançando mão de algum dinheiro que a esposa possuía, montou carpintaria nas proximidades da atual Rua do Cruzeiro, onde trabalhou, até ir preso.
As informações prestadas por Júlio Porto sobre o famigerado ataque a Apodi apresentam-se mais substanciais do que as dos cangaceiros Rouxinol e Lua Branca, fornecidas em depoimentos à polícia cearense após prisão, principalmente por se achar aquele, no par de minudências anteriores ao episódio cruento na localidade potiguar.
Observe-se o que consta em O Ceará (26 de julho de 1928, p. 1), onde Rouxinol, em entrevista na prisão de Fortaleza, explicita versão análoga à acima citada.
Com apenas 20 anos de idade, pele morena, franzino, cabelos quase pretos, olhos castanhos, não sendo mal encarado, nascido em Lavras da Mangabeira, era filho de Joaquim Vicente de Paula, carpinteiro naquela cidade. Viveu em sua terra natal, onde era bem quisto, até o ano de 1926, quando resolveu abandonar o lugar em busca de emprego. Dirigiu-se a Missão Velha por saber que ali estavam sendo feitos serviços ferroviários, havendo, portanto, possibilidade de se empregar.

            Naquela via, conseguiu colocar-se na estrada de ferro, onde esteve trabalhando durante quatro ou cinco meses, dando, afinal, despedido, em virtude da conclusão dos trabalhos ferroviários. Partiu dali para Aurora, para tentar a vida, conseguindo, depois de algum tempo, uma colocação no sítio Ipueiras, de propriedade de Izaias Arruda, emprego que lhe foi arranjado por José Cardoso.


continua...

Trecho de capítulo de livro em elaboração.
João Tavares Calixto Júnior


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O Incêndio da Ponte do Rio Salgado

Incêndio da Ponte do Salgado. Arte: Ronald Guimarães.

O Incêndio da Ponte do Rio Salgado
Razões do ocorrido – Balão e Cansanção, personagens importantes – A participação dos Marcelinos – A repercussão na imprensa – O desfecho


Estavam em polvorosa as populações da parte do Cariri onde as contendas entre os Paulinos e os Arrudas não findavam. Entre Missão Velha e Aurora, desde abril de 1926, vários foram os registros de episódios criminosos entre os grupos que se digladiavam. Eram forças internas alimentadas pela odiosidade tremenda que lhes tomavam conta.
Entretanto, passados os casos de 1926 aqui já relatados, com a amenização da querela entre os grupos pela retirada dos Paulinos e a tomada de posse de Izaias como Prefeito de Missão Velha em 30 de novembro deste mesmo ano, reinou absoluto Izaias Arruda de Figueiredo deste período, até às proximidades da data de sua morte. Era incontestável o seu predomínio. Atuava descomedidamente, e sob a sombra de Moreira da Rocha, Presidente do Estado, sua palavra era lei.
            Faz-se compreender isto Jáder de Carvalho, quando, em edição de agosto de 1928 de seu A Esquerda, declara: “Izaias encarnou na administração de Moreira da Rocha, o chefe supremo da política sertaneja, tornando-se maior que o Padre Cícero”! Corrobora também Edmar Morel em texto no jornal carioca A Batalha (5 de novembro de 1933, p. 2), onde faz alusão à entrada do grupo de Lampião na cidade de Mossoró, erguendo vivas ao Padre Cícero e ao Coronel Izaias Arruda.
            De prova a esse caráter de pujança estabelecido, narra-se aqui, apoiando-se em documentação e textos de jornais da época, um dos acontecimentos de maior repercussão atribuídos a Izaias Arruda e José Gonçalves: O incêndio da ponte ferroviária do Rio Salgado¹, ocorrido entre os dias 9 e 10 de junho de 1927, entre o povoado de Quimami (Missão Velha) e o Distrito de Ingazeiras (Aurora), na comunidade Olho d’Água em Missão Velha, mais precisamente.
A propósito, enfatiza-se o que apontam dois cangaceiros participantes na empreita, que tiveram reconhecidos e confirmados os depoimentos, por vários outros conhecedores do caso, como Raimundo Nonato Bezerra (Doca Choffeur), capanga do Chefe de Missão Velha, em depoimento publicado em A Esquerda (20 de abril de 1928, p. 1-2). Os bandoleiros Mariano Aleixo da Costa e José Saturnino, companheiros dos Marcelinos, presos e levados a Fortaleza em fevereiro de 1928, também confirmam o ocorrido (veja-se: O Ceará, 17 de fevereiro de 1928, p.1).


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1 – Pontilhão metálico da RVC construído em meados de 1923. Está a cerca de 16 Km de Ingazeiras e 11,5 Km do centro de Missão Velha, sob as coordenadas: 7°10'31.9"S e 39°04'48.1"W.



No dia 8 de fevereiro de 1928 chegavam a Fortaleza os bandidos Cansanção e Balão, presos no município de Arneiroz (Ceará), lugar onde chegaram em 31 de janeiro do mesmo ano. Com trouxas às costas, arrancharam-se numa ponta de rua, dizendo-se trabalhadores e que seguiam dali, para o Estado do Piauí. Em 3 de fevereiro, em depoimento constante no inquérito instaurado pelo Delegado Leonardo Feitosa, afirmam que procuravam vender um revólver, pois era grande a fome e precisavam se saciar.
Presos e separados, terminaram por fazer interessantes declarações, em conversa particular e perante a autoridade policial. A morte de João Vinte e Dois, integrante dos Marcelinos e a participação destes no incêndio da ponte estão entre estas, e em virtude da relevância histórica, aloca-se aqui o conteúdo.
No interrogatório ao Delegado de Arneiroz, Cansanção disse chamar-se Manoel Maurício, natural do Cumbe², Alagoas, e morador, há anos em Tacaratu, Pernambuco. De lá, em consequência de um casamento precedido de rapto, por um irmão, João Maurício, fora este assassinado de emboscada, por dois cabras, de nome Cícero Lopes e Vicente Pereira, e que um destes foi preso em Juazeiro (Ceará), mas logo posto em liberdade, e que devido às proteções da terra, os seus inimigos ficaram sem perseguições em Tacaratu. Em virtude disso, a convite de João Palmeira, o Balão, seu conhecido, por ser morador em Tacaratu, resolveu entrar no grupo de Lampião, no intuito de conseguir vingar-se dos seus inimigos, começando a fazer-se bandido em janeiro de 1927. Esteve sob o comando de Lampião, que diz ser um “caboclo” muito bom para os seus cabras, quando as perseguições andavam ativas, e ruim, quando andavam com muita liberdade. Disse mais que deixou o grupo de Lampião, ficando no Cariri, quando este promoveu o ataque a Mossoró, no Rio Grande do Norte. Passou-se para o grupo dos Marcelinos3, sob o comando de João Vinte e Dois. Disse que, perto do lugar, na mata, haviam abatido uma rês e achavam-se arranchados abaixo de um grande visgueiro, começando, uns a almoçar, e o bandido Toalha fazia um café. Ao serem surpreendidos por uma artilharia das mais tremendas descargas, João Vinte e Dois caiu ferido mortalmente, gritando: “Valha-me Nossa Senhora!” (...) Disse ainda, que o bandido Lua Branca, irmão de João Vinte e Dois correu ferido, juntamente a Toalha, e que ele, quando viu que estava só, também se retirou em corrida. João Vinte e Dois, caído, lhe havia pedido que o retirasse daquele lugar, mas ele não tinha podido fazer, tal era o perigo. Disse mais que, morto de fome e de sede, foi ter ao lugar Caldas, onde disse a um homem ser soldado, mas depois declarou ser bandido e pediu um guia que o levasse à estrada da Serra do Mato. Conseguindo isso, soube que já haviam conduzido o cadáver de Vinte e Dois. Disse que, no momento do ataque, ele estava tocando realejo de boca, e que supunha que haviam sido traídos por alguma peita, ou pelos urubus que farejavam a carne. Juntando-se a alguns

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2 – Denominação antiga do município Alagoano de Mata Grande, hoje, com população estimada em 25 mil habitantes. 3 – O grupo de João 22 compunha-se de nove bandoleiros: Lua Branca (irmão e lugar-tenente do chefe), José Paulino, Manoel Toalha, Raimundo Constantino, Pedro Miranda, João e Joaquim Gomes, além de Bom de Veras, Manoel Marcelino, famoso chefe do grupo. Veja-se: Frederico Pernambucano de Melo, Guerreiros do Sol, p. 228.


companheiros, subiram a serra, e ficaram enxergando o Crato e o Juazeiro, e nesse lugar, dormiram, e quando seguiram, perto do Crato, devido ao bandido Gengibre andar
com muitos ruídos nos matos, ouviram uma voz que perguntava: “Meninos, anda alguém por aí?” Logo ouviram outra voz dizer, fazendo descarga em Balão: “Vai morrer sabendo”. (...) Subindo a serra, de novo, seguiram rumo a Barbalha, e já perto, enterraram dois fuzis, um outro cortado, que chamavam mosquetão, um rifle, bornais com munição e bandoleiras, enfeitado um com moedas de prata. Estiveram na feira de Barbalha e seguiram procurando serviço, andando pelo povoado Catolé, Município de Maria Pereira4, e ultimamente estavam trabalhando em Serra da Donana, entre Saboeiro e São Matheus³, para um senhor chamado Solon, que era comerciante em Iguatu. Disse que no mesmo lugar ficaram trabalhando ao mesmo senhor os bandidos José Paulino, vulgo Gengibre, e Doce bom. Disse que os tiroteios perigosos em que se achou, foram os do Pé da Serra, do lado de Pernambuco, em que morreu João 22. Disse que o Coronel Ângelo da Gia protegia o grupo de Lampião, fornecendo-lhes tudo o que necessitavam, inclusive, armamento e munições, e recebia de Lampião, o pagamento integral de tudo e gratificações. Admirou-se da pergunta se num fogo que tiveram era contra as forças do Major Theóphanes, porque explicou que as forças daquele oficial não ofendiam ao grupo de Lampião, e nem este ofendia aos parentes do Major Theophanes, e nem o prejudicavam nas fazendas. Afirmou também que o coronel Izaias Arruda fornecia, por intermédio de José Gonçalves, farinha, rapaduras, bálsamos, e tudo quanto precisavam os bandidos, inclusive, muita munição e armamentos.
Terminado o interrogatório, perguntou ao Delegado: “É para eu contar o negócio da ponte queimada”? Pedida a explicação, disse o bandido que José Gonçalves foi entender-se com o grupo de cangaceiros, dizendo que o Coronel Izaias Arruda ordenava um incêndio à ponte na Estrada de ferro de Baturité, entre Missão Velha e Ingazeiras, isso tudo, para o Coronel Arruda sair do prejuízo de uma madeirada que tinha “empancada”.
Categoricamente, confessou que o incêndio da ponte foi promovido por José Gonçalves, com o auxílio dele (Manoel Maurício – Cansanção), João Palmeira (Balão), João Vinte e Dois, José Pinheiro (Gengibre), Caracol e Chumbinho, e que o querosene foi o inflamável utilizado no incêndio. Afirmou ainda ter sido lhe apresentado, nesta ocasião, O Malho5, e que conhecia muitos dos companheiros nas fotos.
            O outro prisioneiro era João Palmeira, alcunhado por Balão, natural de Mata Grande, Estado de Alagoas. Logo informou que fez parte dos patriotas que estiveram em Campos Sales, no tempo da entrada dos revolucionários, e que entrou no grupo de Lampião em 1926. Afirmou ser morador em Tacaratu, e que depois de entrar no grupo,



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4 – Antiga denominação do município cearense de Mombaça. Hoje, de aproximadamente 43 mil habitantes.
5 – Revista humorística brasileira criada em 1902. Publicou em suas páginas, dentre outras, fotos do bando de Lampião em Juazeiro em março de 1926.


assistiu aos tiroteios contra forças policiais em Pé Grosso (fazenda), Ipueiras (fora do povoado), onde morreu o bandido Antônio (vulgo Musgeiro), Alto Alegre (Paraíba), onde morreram duas praças, Sabão (Paraíba), onde morreram nove praças e os bandidos
Manoel Nogueira e Joaquim Alagoano, Lentão (Ceará), entre Crato e Barbalha, comandados por João Vinte e Dois, onde morreram três praças e uma moça; Mirdouro (Pernambuco), onde morreu o bandido Manoel Marcelino, o Bom de Veras, que comandava o grupo; Bezerros (povoado de Pernambuco), de onde saiu ferido o bandido Pássaro Preto. Afirmou que assistiu no Estado de Alagoas, à prisão de um homem, cujo nome não lembrava, o qual deu a Lampião cinco contos de réis. Que, entre os bandidos vivos, conhecia: Lampião, Ezequiel, Trovão, Coqueiro, Zé Delfino vulgo Moderno, Moreno, Oliveira, Alagoano, Luiz Sabino, Jatobá, Serra do Ouman, Pinga Fogo, Lasca Bomba, Vicente, Ricardo, Braúna, Antônio dos Santos, Virgínio (cunhado de Lampião), Antônio Marreca, Benedito, Euclides, Jurema, Manoel Maurício, Caracol, Pinhão, Navieiro, Félix Velho, José Latão vulgo Zelatão, um irmão de Serra do Ouman, Miúdo, Quidu, Biu, André e Antônio Marinheiro.
Balão diz durante o seu interrogatório que foi Ildefonso Ferraz, o primeiro protetor forte de Lampião. Morador em Curral Novo, Riacho do Navio (Pernambuco), este fornecia àquele, armas, muita munição, mantimentos e bebidas, embora, tenha intrigado-se com Lampião, temendo a gravidade do perigo que corria. Afirma também que o Coronel Ângelo da Gia (Pernambuco) era um dos grandes protetores de Lampião, ocultando-o com o grupo e dando fornecimento necessário, em mantimentos, armas e munições, por intermédio de seu sobrinho Manoel Tilu, recebendo de Lampião o pagamento de tudo quanto fornece e gratificações em dinheiro.
 Para Balão, no Ceará o maior fornecedor de armas, munições e mantimentos, com ordem de abaterem gados, fosse de quem fosse, era o Coronel Izaias Arruda, por intermédio de José Gonçalves, irmão de Gustavo. Atribui a José Gonçalves a função de comprador da munição, o que se fazia no Crato, para supri-los. Confirmou as declarações de seu companheiro, relativamente ao incêndio, acrescentando que José Gonçalves quisera que o grupo saqueasse o povoado de São José, para repartir o produto e que os roubos feitos por Massilon Leite no Apodi foram repartidos com o Coronel Izaias Arruda. Afirmou que a última vez que Lampião esteve em Aurora, entregou 5000$000 ao Coronel Izaias, por intermédio de José Gonçalves. Confirma que Gengibre e Doce Bom ficaram trabalhando com o comerciante Solon e diz que só eles poderiam acertar o lugar onde enterraram as armas, porque eram naturais do lugar.
Ambos foram acordes que os bandidos mais perversos e sanguinários seriam: Ezequiel, Moreno, Gato, Antônio dos Santos, Coqueiro e Jararaca e defendem Sabino, dizendo que era um “cabra bom”.
Balão havia declarado que quando ficaram tratando de Chumbinho, no Morro Dourado, o coronel Izaias Arruda mandou sete bandidos: João Vinte e Dois, Balão, Cansanção, Mormaço, Lua Branca, Gengibre e Doce Bom, matar, de emboscada, o Tenente Germano, embora, não tivessem ido.
O referido tratamento em Chumbinho deveu-se a ferimento recebido durante tiroteio travado na Piçarra, quando alcançado pelas forças do Tenente Arlindo Rocha, vindo de Pajeú juntamente aos Marcelinos (Lua Branca e João Vinte e Dois).
Cansanção informou ainda que Balão, o bandido Pedro e José Pequeno assassinaram o Coronel Pedro Lucas, no Riacho do Navio (Pernambuco) e José Pequeno carregou uma mulher para o lugar Favela, onde foi assassinada pelo grupo armado que acompanhava a Ildefonso Ferraz. Disse também que assistiu aos fogos de Sozinho, Umbuzeiro, Sabão e Cacimbas. Declarou que Antônio da Piçarra (Pernambuco) fornecia munições ao grupo. Que certa vez encontraram-se com o Tenente Germano e disseram-lhe que eram cabras de Izaias Arruda, e assim, passaram em paz. Falou ainda que, ao ver O Ceará, onde estavam publicadas as cartas de João Vinte e Dois, disse ter visto quando Lua Branca as estava escrevendo.
       Importante se faz salientar que diante das primeiras declarações feitas pelos cangaceiros, comprometedoras principalmente ao chefe situacionista de Missão Velha, ficou decidido que ambos seriam recambiados para o sertão, onde “desapareceriam para sempre”. A morte dos bandoleiros seria talvez o único meio de se evitar que importantes fatos da verdadeira história do cangaceirismo no Ceará viessem à luz da publicidade. Chegando a informação ao conhecimento da imprensa da Capital, telegrafa Júlio de Matos Ibiapina, diretor de O Ceará ao Presidente do Estado, narrando o fato e pedindo providências, a fim de que fosse evitado o fuzilamento dos bandidos. O Presidente, respondendo o telegrama, confirmou que os presos voltariam a Barbalha, e assegurou que seriam cercados de todas as garantias. Eis o conteúdo do documento:

Fortaleza nº 415 fls. 43-45 – data 10 - horas 12
Bandidos Cansanção, Balão, grupo Lampião, foram capturados Arneiroz e deverão seguir Barbalha, onde estão pronunciados, a fim serem julgados. Nunca houve propósito governo fuzilar bandidos que seguirão cercados todas garantias. Saudações.
Desembargador Moreira.

            Na manhã do dia 11 de fevereiro de 1928, pouco depois das 04:30 hs da manhã, efetuou-se o embarque de Cansanção e Balão rumo ao Cariri. Foram conduzidos para a Central da Estação de Ferro de Baturité numa cena nunca antes vista em Fortaleza. Os dois companheiros de Lampião foram fortemente amarrados, pelos braços e todo o corpo, tendo livres apenas os movimentos das pernas. Seguiram rua a fora cercados de 30 praças “embaladas”, com diversas cartucheiras cheias de balas.
Na Estação ferroviária, até o momento do trem partir, a curiosidade geral foi atraída por aquele quadro impressionante. Na hora da composição, feita em marcha, verificou-se que os bandidos eram acompanhados por oito praças embaladas, armadas de fuzil, e comandadas pelo Sargento Pinheiro. Os silvos da locomotiva perdiam-se no espaço e todos repetiam convencidos: “aqueles desgraçados vão morrer”. Foi como terminou a estadia em Fortaleza dos dois bandidos, companheiros de Lampião, participantes do incêndio da ponte do Salgado, veja-se: O Ceará (12 de fevereiro de 1928, p. 1).
Logo que chegaram a Fortaleza e recolhidos à cadeia, Cansanção e Balão foram ouvidos pelo Sr. Vicente de Paula Pessoa, chefe de polícia interino, que se fez acompanhar do Tenente Manoel Gonçalves de Araújo, sogro de Izaias Arruda de Figueiredo. Anota-se como de extrema importância ao caso, o que publica O Ceará (12 de fevereiro de 1928, p. 2):

“O ponto de partida para o início das informações de que precisávamos era a penitenciária desta capital, mas a incomunicabilidade dos presos impediu-nos de conseguir, ali, o que desejávamos (...)”.
“Não desanimamos em virtude desse revés, e prosseguimos a nossa ação. Era preciso saber o que se passava e, graças à popularidade que O Ceará desfruta em todos os círculos, obtivemos informações preciosas que nos julgamos no dever de estampar, visto como o embarque dos dois bandidos vem demonstrar que a divulgação do que disseram não pode mais estorvar a ação da justiça”. 

            Referindo-se ao interrogatório feito com os dois bandidos, assim declara o jornal:
“O interrogatório foi longo, revelando os dois facínoras fatos importantíssimos (...) avultava, entre esses, o do incêndio da ponte ferroviária sobre o rio Salgado, em Missão Velha”.

Enfatiza o periódico que a entrevista foi procedida numa atmosfera de ameaças aos bandoleiros, feitas cada vez que os depoentes citavam o nome de uma influência política envolvida no crime que levou aos cofres da União um prejuízo calculado em cerca de 300 contos de réis.
            Divulgada a notícia em O Ceará, o Sr. Abraão Leite, diretor da RVC, mostrou-se, desde logo, interessado em ouvir os bandidos, sabedores daquele crime. Conseguiu o Engenheiro a permissão necessária para ouvir Cansanção e Balão, e na tarde de 10 de fevereiro, na companhia de Vicente de Paula Pessoa, Dr. Francisco de Alencar Matos e do Escrivão de Polícia, interrogou por três horas os bandoleiros.

“Seriam 2:30 da tarde quando vimos o Dr Abraão Leite, em companhia do chefe de polícia e do procurador geral da república, Dr. Francisco de Alencar Matos, entrar na penitenciária, de onde saiu depois das 5 horas da tarde” (O Ceará, 11 de fevereiro de 1928, p.2)


O interrogatório, feito a cada um separadamente, combinou inteiramente as declarações prestadas pelos dois. Perante o diretor da RVC versou-se quase que inteiramente sobre o incêndio da ponte de Missão Velha, e novos detalhes vieram à tona quando do interrogatório feito pelo Delegado de Arneiroz. Segue resumo:
Fazendo parte do grupo de Lampião, ficaram juntamente a João Marcelino (Vinte e Dois), Chumbinho (que estava ferido), Caracol e outros no Morro Dourado, entre Aurora e Missão Velha, quando da excursão a Mossoró e à região do Jaguaribe. José Gonçalves, Delegado de Polícia em Missão Velha, tornou-se camarada do grupo, procurando-os sempre por intermédio de Izaias Arruda, Prefeito Municipal. Em nome deste, fornecia mantimentos, fumo e cachaça aos bandoleiros.
Certa feira, cerca de quatro horas da tarde, José Gonçalves chegava a Morro Dourado, onde comunicava ao grupo de bandoleiros que tinha ordem do seu chefe para fazer um serviço e, por isso, precisava do auxílio daqueles, que se prontificaram a segui-lo. Por volta das onze da noite, chegava o grupo a Missão Velha, tendo antes, José Gonçalves, avançado na frente com dois dos bandoleiros que carregavam duas latas de querosene enfiadas, pelas argolas, num pau. José Gonçalves, nas proximidades da ponte ferroviária, declarou que o serviço era tocar fogo naquele próprio federal. O plano de incêndio foi todo organizado na ocasião, ficando Cansanção de sentinela, com bala na agulha do rifle, para ver se vinha alguém. Enquanto isso, Balão abria as latas de querosene que eram após, levadas por João Vinte e Dois que, auxiliado pelos outros, “embebia” os dormentes da ponte com aquele líquido. Em seguida, todos atearam fogo em diversas partes, só se retirando do local quando verificaram que o fogo não podia ser apagado.
Depois destas declarações, categóricas, Izaias foi intimado a comparecer na cadeia, o que o fez, acompanhado do Advogado Dr. Melo e Silva. Feita a acareação com os bandidos, estes, em sua presença, repetiram tudo o que já haviam declarado. Sobre este evento, informa O Ceará (12 de fevereiro de 1928, p. 4) sobre cena interessante:

“O Sr. Izaias Arruda desmentia com veemência os bandidos e estes, sustentavam, calmamente, que tudo quanto revelaram era a mais completa verdade (...)”.
O chefe de Policia afirmou que os cangaceiros haviam seguido para o interior em virtude de uma requisição do Juiz de Direito do Crato. Informou-se também que o Sr. Abraão Leite havia requisitado a ida de José Gonçalves a Fortaleza, a fim de também acareá-lo com os bandidos, o que não chegou a acontecer, pela ida dos mesmos ao interior.

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            O caso do incêndio em uma ponte da estrada de ferro de Baturité nos moldes como ocorreu gerou alta repercussão na imprensa da época, e as manchetes vinculadas ao acontecido não foram exclusivas da mídia cearense. Jornais de todo o País estamparam o ocorrido. A notícia de um incêndio criminoso com grande prejuízo à União corria os quatro cantos, e foi inflamada ainda mais pelo fato do suposto envolvimento de um político da região. A fama do temível Coronel Izaias Arruda alastrava-se como fogo em palha.
            Desde a data do crime (junho de 1926) até os últimos dias de vida de Isaias Arruda, foram muitos os noticiários que enfocaram as consequências a este ato (veja-se: Jornal do Recife, 13 de junho de 1928; O Ceará, 23 de julho de 1928; O Paiz, 17 de julho de 1927). Entretanto, o que mais motivava as publicações a respeito era o desfecho da estória. Seriam sentenciados os responsáveis? Presos os demais participantes assim como Cansanção e Balão? Alguma represália por parte do Governo receberia Izaias Arruda e José Gonçalves?
            Em veemente artigo editorial publicado pelo Correio do Ceará, também exposto em A Esquerda (Rio de Janeiro), de 22 de fevereiro de 1928 (p. 5), concita o Dr. Francisco Mattos, Procurador da República no Ceará, a denunciar os autores do incêndio da ponte federal do Rio Salgado, atentado por eles considerado selvagem. Observa aquele jornal, que diante dos depoimentos tomados na Cadeia Pública de Fortaleza, em presença do diretor da Rede de Viação Cearense e outras autoridades, tudo estava a exigir a justa medida em defesa dos interesses da Nação e da Justiça pública para a punição dos culpados. O principal acusado pelo crime, segundo as declarações tomadas aos bandoleiros Cansanção e Balão, que dele foram cúmplices, seria o chefe situacionista e Prefeito de Missão Velha, Izaias Arruda, há muito tempo apontado como grande protetor de bandidos do Sul do Estado. A Edição nº 63 de A Esquerda, periódico da responsabilidade de Júlio Ibiapina, reproduz o que publica a Gazeta de Notícias em fevereiro de 1928, onde as explicações dadas pelo citado Dr. Francisco Mattos, sobre o memorável caso da ponte do Salgado, vêm à tona. Asseverou o advogado da União neste Estado, que enviou ao 1º suplente de Juiz Federal de Missão Velha, apenso ao ofício nº 88 de 25 de fevereiro último (1928), cópia dos autos de pergunta a que responderam Balão e Cansanção, para serem ouvidos naquela localidade os Srs. Izaias Arruda e José Gonçalves, com assistência do ajudante do procurador seccional. A respeito deveriam ser ouvidas também as pessoas mais idôneas de Missão Velha, assim como membros do grupo de João Vinte e Dois. Esta providência tomada pelo Dr. Francisco Mattos seria de efeito negativo e sobre isso, ele tinha certeza absoluta.
            Comenta desta forma o jornalista Júlio Ibiapina sobre as consequências do incêndio, atribuídas a Izaias Arruda e José Gonçalves:
“Senhor de baraço e cutelo como é o Sr. Izaias Arruda naquele feudo digno de melhor sorte, os pobres matutos que ali exercem as funções de suplentes de Juiz Federal e procurador seccional não se atreviam a ouvir a potência máxima do poder sobre o fato em apreço, nem tampouco a dizer a verdade às pessoas mais idôneas de Missão Velha. Quanto aos informes de pessoas do grupo de João 22, estes em tempo algum poderiam ser tomados, e agora principalmente, que o grupo desapareceu da face da Terra. José Gonçalves, logo soube dos depoimentos prestados por Balão e Cansanção na cadeia desta Capital, e já não estando nas graças de Izaias, zarpou para São Paulo, em cujo Estado exerce a sua atividade. Se fosse Zequinha Contendas ou outro qualquer chefe democrata o autor material ou intelectual do incêndio da ponte do Salgado, e já teriam caído nas malhas de um processo, se não estivessem sofrendo coisa muito pior. As cópias dos depoimentos de Balão e Cansanção foram remetidos em fevereiro, estamos em maio e ainda não foi devolvida e nem será. Queremos dizer que as coisas ficarão no pé em que estão, sendo a União, a única prejudicada. Fique, pois, o público sabendo que ao Dr. Abraão Leite nenhuma responsabilidade cabe sobre a impunidade em que ainda se encontram os criminosos. O diretor da Baturité cumpriu o seu dever, conforme afirmou o próprio Dr. Francisco Mattos”.

            O Ceará (28 de julho de 1928) publica o que seria um “pedido de favor” dos bandoleiros Balão e Cansanção, presos novamente na Capital do Estado, já que tiveram um segundo recambio, da cadeia de Barbalha. Desejavam ser acareados com Izaias Arruda em presença das autoridades e dos representantes da imprensa, a fim de, perante o Prefeito de Missão Velha, repetiram a história de diversos crimes de que o mesmo era acusado como mandante inclusive, o do incêndio da Ponte do Rio Salgado.
“Aqueles criminosos emprenharam-se conosco para que conseguíssemos essa acareação, acrescentando que se acham resignados com a situação em que se encontram, mas que não se conformam com o fato de achar-se Izaias Arruda em liberdade, desfrutando a vida, quando é mais criminoso do que eles, pois foi o mandante dos crimes que o levaram à cadeia”.

Em 8 de junho de 1928 era nomeado o Capitão Antônio Matos Dourado, para delegado de polícia, a fim de garantir o inquérito aberto sobre o incêndio da ponte sobre o Rio Salgado (Jornal do Recife, 10 de junho de 1928, p. 6). Em 17 de julho de 1928 eram demitidas todas as autoridades policiais de Aurora e Missão Velha, o que foi considerado um golpe, do novo Governo do Estado, ao cangaceirismo político. Com o enfraquecimento político de Izaias Arruda frente ao novo Governo, em Missão Velha, assumia o cargo de Delegado de Polícia em 26 de julho de 1928, José Canário, anteriormente obrigado a abandonar a cidade em face às perseguições do Prefeito Izaias Arruda (O Ceará, 27 de julho de 1928, p. 6). Em 12 de junho, seguia para Missão Velha o Dr. Francisco Alencar Matos, procurador da República no Ceará, a fim de investigar a quem sabia da autoria do incêndio da ponte da estrada de ferro sobre o Rio Salgado (Jornal do Recife, 13 de junho de 1928, p. 5).

“Esse incêndio ocorreu há meses passados, não tendo sido, até agora, apurada a sua autoria, apesar de vários depoimentos tomados sobre o aludido sinistro. Os jornais têm apontado como responsáveis pelo incêndio, políticos daquele município”.

            A preocupação com o desfecho do caso era evidente na imprensa da época. Recaia sobre alguns nomes, especificamente, a responsabilidade da omissão sobre o cumprimento da lei. É o que conta A Esquerda (2 de maio de 1928, p. 5):
“Muita gente talvez entenda que sobre o Dr. Abraão Leite recai a culpa de não estar ainda sendo processado o Prefeito Izaias Arruda, pelo incêndio sobre a ponte do Rio Salgado, ocorrido em dias de junho do ano passado. O diretor da Baturité agiu desde o começo com a máxima energia, mandando abrir inquérito em Barbalha, aonde fez declarações importantes a respeito, um dos célebres Marcelinos, detido na cadeia pública daquela cidade, e há pouco tempo, tomando os depoimentos de Balão e Cansanção na cadeia de Fortaleza, perante do Procurador da República, neste Estado. A essa autoridade se deve tão somente a impunidade de Izaias, porque a ele competia agir em primeiro lugar, oferecendo a quem de direito a competente denúncia. S.s. não sabemos porque ainda não se decidiu cumprir o seu dever, defendendo os direitos da União tão fundamente prejudicados. O Dr. Abraão Leite não dormiu quanto ao crime da ponte do Salgado, e para a sua pronta punição, agiu desde a consumação do incêndio daquele próprio federal”.
           
Também sobre as ações tomadas pelo diretor da RVC frente ao caso, destaca O Ceará (14 de fevereiro de 1928, p. 2), o que segue:
“O Sr. Dr. Abraão Leite, diretor da RVC que interrogou demoradamente aqueles cangaceiros já requereu ao Sr. Chefe de polícia, cópia dos depoimentos, a fim de enviá-los ao Sr. Procurador Geral da república, para os devidos fins. Desta forma, há esperança de que prossiga o processo sobre o incêndio da ponte do Salgado, que prejudicou a União em cerca de 300 contos de réis. Depende, agora, exclusivamente do Sr. Dr. Alencar Mattos, procurador da República, o prosseguimento do inquérito”.

            Por fim, assim como afirma o Correio da Manhã (27 d abril de 1928, p.2), terminado o inquérito aberto por iniciativa do Dr. Abraão Leite, foi o mesmo remetido ao Presidente do Estado, que o abafou, por interesses políticos. Tempos depois, com a prisão e os depoimentos tomados de Balão e Cansanção, de novo do diretor da RVC agiu no sentido de obter a punição dos responsáveis. A Justiça Federal ouviu os coautores, que foram libertados depois de cinco anos e meses na prisão, e tudo ficou como antes,
            O interesse revelado, pelo chefe do executivo, da primeira vez, em não aprofundar a matéria parece ter contaminado os representantes dos interesses da União: o processo, não teve andamento.




João Tavares Calixto Júnior
Texto retirado de capítulo de obra em elaboração: Izaias Arruda - Caudilho do Cariri.
Juazeiro do Norte, Ceará, fevereiro de 2015.