Por: João Tavares Calixto Júnior.
Ernesto Carlos Augusto |
Aos 23 de janeiro de 1874 ocorreu um dos mais ruidosos casos criminais da história da região Aurora-Lavras. O Padre Joaquim Machado da Silva, vulgo Padre Gangan, Capelão na Venda, foi acusado de cometer assassinato na Vila das Lavras, de onde era natural.
Sobre o reverendo, nasceu aos 6 de dezembro de 1843, filho de Francisco Machado da Silva e Maria do Ó de Jesus. Ordenou-se aos 3 de novembro de 1872 no Seminário de Olinda, PE. Foi coadjutor em Lavras, Telha (hoje Iguatu) e São Bernardo da Cachoeira (atual Solonópole), bem como Capelão na Povoação da Venda, onde perpassou de janeiro de 1873 a janeiro de 1874, data da ocorrência do crime ao qual foi acusado.
Registrou-se no Livro de Matrimônios da Paróquia de São Vicente Ferrer (1870-1875, p.143), no dia 14 de janeiro de 1874, o último lançamento de sacramento matrimonial exercido pelo referido sacerdote, ocorrido antes do acontecimento fatídico. Casou no sítio Tabocas a Antônio de Barros Albuquerque e a Josefa Maria da Conceição.
(Último matrimônio realizado pelo Padre Joaquim Machado da Silva enquanto Capelão da Venda. Livro de Registros de Matrimônios da Paróquia de São Vicente Ferrer de Lavras, 1870-1875, p. 143) |
Sobre o episódio referido, foi apontado por matar, a golpe de faca no peito, a Ernesto Carlos Augusto, irmão da lendária matrona de Lavras Fideralina Augusto Lima.
Consta nos autos do processo, o crime ter sido praticado em virtude de luta corporal travada entre o Pe. Joaquim Machado da Silva, Cosme Francisco de Oliveira Banhos e Ernesto Carlos Augusto. A refrega foi motivada pela existência de namoro entre o Pe. Machado e Raquel, tia materna do dito Cosme Banhos e irmã da esposa de Ernesto Carlos Augusto. Em face do que vinha ocorrendo, os dois insurgiram-se contra o religioso, que terminou sendo processado por crime de homicídio.
Findada a luta, que resultou na morte de Ernesto provocada por uma facada na parte direita do peito, retornou o Pe. Machado a cavalo à Povoação da Venda, pela estrada velha que ligava a Capital ao Cariri, no leito esquerdo do Salgado. Ao chegar, e já no outro dia (22 de janeiro de 1874), foi ouvido pelo Subdelegado de polícia da Venda, que lhe inquiriu sobre o acontecido. Afirmou o cura, ter ido à Vila das Lavras, de onde era natural e tinha casa, fazer um batizado “a convite”. Sua versão ao oficial esteve atrelada ao fato de ele, estando nas Lavras, em sua casa, das dez para as onze da noite do dia 21, estudando uma homilia, deparou-se com a entrada do dito Cosme pela porta da frente, que ao se admirar por estar ainda ele acordado, proclamou a frase seguinte: “Nunca vi gente rezar como padre”. Após a conversa com Cosme, retirou-se apressadamente ele para o quintal da casa por achar-se com dor de ventre, quando ali, encontrou-se com Ernesto sem camisa, que perguntava por Cosme, e segurava um pedaço de pau. Respondeu-lhe, então, o sacerdote que o esperasse um pouco, a fim de fazer-lhe as necessidades fisiológicas, ao tempo em que afirmava não saber de Cosme, já que tinha saído de sua residência. Ao voltar, deparou-se o Padre com Cosme armado com um pedaço de pau, e descarregou-lhe forte golpe, que o fez cair ao chão e gritar em alto som: “Cosminho, não me mate pelo amor de Deus”. Ao ouvir os gritos de súplica do religioso, socorreu-lhe o vizinho Manoel Soares, e com isto, fez desistir a dupla de prosseguir num ataque fatal. Assegurou ainda o referido Padre ter se lançado ao mato após ter ouvido fortes ameaças de morte impetradas pela dupla.
Faz-se importante salientar que foi inquirida na Subdelegacia da Venda uma testemunha, a mesma que o recebeu a fim de tratar de seus ferimentos. Era João Francisco Leite, personagem citado não poucas vezes nos livros de termos paroquiais de Lavras e Aurora, matrimoniado três vezes e pai de vinte e quatro filhos. Foi Intendente Municipal, Vereador, Juiz substituto e Inspetor da Instrução pública na Venda e depois na Vila d'Aurora.
João Francisco, ao ser indagado sobre os ferimentos que recebera o sacerdote acusado, respondeu terem sido realmente graves, e que os tinha presenciado logo assim que chegou o padre aos seus aposentos. Afirmou ainda ter ouvido falar que, no local da enrasca, foi encontrada uma bainha de faca, que ouvira dizer ser de Cosme, e não do Padre Machado, já que nunca o tinha visto armado.
Sobre as testemunhas ouvidas em Lavras, prestaram depoimento sempre “por ouvi dizer”. Transcreve-se aqui o depoimento de uma dessas: Graciano Coriolano de Sousa: “Diz Graciano Coriolano de Sousa Lima que à noite em sua casa sem lhe aparecer o sono, dirige-se para a casa do Capitão Banhos e achando-se ali em conversa, aparece a mulher de Ernesto Carlos Augusto dizendo ao marido que haviam empurrado a porta de sua casa (de trás) ao que o marido diz que tal não foi, senão os porcos, ao que ela refletiu que não tinham sido porcos, visto que empurraram com tanta força que aluiu o batente da mesma porta, dizendo então Ernesto que talvez fosse alguém que lhe quisesse botar entrudo; quando se dava esta conversa, Cosme Francisco Banhos passeava no terreiro da casa para onde se dirigiu Ernesto e entraram em conversação, sem que ele testemunha a pudesse compreender, saindo ele do lugar onde se achava, foi ter onde se achavam ambos, perguntou se José Raimundo se achava em casa, etc.” “As onze horas da noite, mais ou menos, voltou à casa de José Raimundo e estando ali, observa passar uma pessoa apressada que ele, testemunha, supôs ser alguém que tinha feito algum roubo, e saindo para um dos oitões observa a fala de Antônio Morais. Pergunta o que havia acontecido ao que ele respondeu que tinha sido o Padre Machado que tinha dado uma facada em Ernesto que se achava à morte. Disse mais que, dirigindo-se para a casa do Capitão Banhos, aí encontrou este que estava pegado com seu filho Cosme Francisco Banhos que estava chorando, dizendo que o Padre tinha morto a Ernesto, e ele testemunha procurando saber de Cosme Banhos como se tinha dado este fato, ele narrou-o da maneira seguinte: Disse que era oculto o tal laço de Raquel com o Padre Machado, e nesta noite, desconfiando Ernesto já por alguns pasquins, já porque se achando em casa do referido um oficial de sapateiro e o Padre não consentiu que ele ali se hospedasse, à vista disso Ernesto convida a ele, Cosme Banhos para ir atocaiar o referido Padre e com efeito colocaram-se debaixo de uns pés de ateiras e com mais pouco apareceu o Padre de camisa e ceroula, embrulhado em uma coberta de ganga encarnada com o forro branco, batendo no portão do Padrinho Machado, saindo Ernesto a falar ao Padre, ele corre, e ele Cosme, o acompanha, que o alcançando dá-lhe uma cacetada que o deita por terra e tratou de pegar o Padre, que o pegou pelas goelas com uma mão e com a outra pega na mão do Padre que tinha uma faca; e gritando, digo, e gritou a Ernesto que chegasse que o cabra estava pegado; nisto recebe Cosme uma grande pancada dada por Ernesto, que caiu sem sentidos e quando torna em si, ouve a voz de Ernesto dizer que o cabra o tinha morto; nisto ele, Cosme, gritou: Compadre, pois eu mato o cabra, ao que Ernesto o pega pela cintura dizendo que não fizesse isto, a vista disto não pude perseguir o Padre, chegando também logo seu pai que o pegou, etc.”
A propósito novamente da referida bainha, informada por João Francisco Leite, na Venda, afirma, em depoimento realizado na Vila de Lavras, o farmacêutico Antônio Francisco de Morais que, dias após o trespasse de Ernesto, Isabel de Tal lhe informara que “o Capitão Antônio Francisco de Oliveira Banhos havia dado dez mil réis a João Mira e igual quantia a outra das testemunhas que depusessem no processo” para que dissessem que conheceram a tal bainha encontrada no local do conflito, e que esta era de uma faca pertencente ao Padre, “recomendando o dito Capitão a essas testemunhas que firmassem seus conhecimentos da dita bainha, dizendo que já haviam cortado capim e cana para cavalos com a faca que ela guardara”.
(Página dos Autos do Processo Criminal do Padre Joaquim Machado da Silva) |
Outro depoente afirmou que Isabel Maria do Espírito Santo o havia informado que, na casa do referido Capitão Antônio Banhos, encontrara uma faca ou punhal ensanguentado. Este, que atendia por Manuel Soares da Cunha, empregado que era do dito Capitão, em presença do Juiz, negou haver feito tal afirmação.
Notemos como foi feita a queixa, ao Juiz Municipal, pela viúva de Ernesto, Vicência Maria da Conceição:“Persuadido seu infeliz marido Ernesto Carlos Augusto (segundo se dizia e corria no domínio popular) que o queixado, esquecido de seus deveres, calcando aos pés o seu sagrado ministério e cobrindo da pútrida lama da corrupção sua batina, alimentava pretensões criminosas contra a honra da casa do pai da queixosa, pretendendo ele, pelos sentimentos de amor de família, verificar se era verdadeiro o que se dizia. Para isso, tendo chegado do Distrito da Venda, o queixado, no dia 21 de janeiro, findo, concordou e assentou na noite daquele dia seu infeliz marido, com seu primo Cosme Francisco de Oliveira Banhos, colocaram-se ao pé da casa do pai da queixosa, onde se conservou o seu desditoso marido, estando o seu companheiro (Cosme) um pouco distante, até que por volta da meia noite, teve o grande dissabor de ver o dito Padre, que transformado em lobo, batia na porta de trás da casa do pai da queixosa, saindo-lhe então ao encontro, seu infeliz marido, e pondo-lhe a mão sobre o ombro, disse-lhe se ainda duvidava do que se dizia a seu respeito, e o queixado sem lhe responder palavra e a sangue frio deu-lhe uma punhalada sobre o peito direito, etc”.
Apesar de tudo, até mesmo de o sogro da vítima Antônio José Machado e seu irmão Cassiano José Machado afirmarem, em juízo, a impossibilidade de saber quem, realmente, matou Ernesto, “dada a noite tenebrosa”, o Padre Machado foi detido.
Em um dos vários depoimentos do Padre Gangan, consta o que segue: “que sendo aquela noite tenebrosa, não se podia distinguir pessoa alguma e na luta, depois de se achar o réu bastante ofendido, Ernesto pensando, empregar no réu, deu em Cosme Banhos uma cacetada que o maltratou bastantemente e, em seguida, depois dos primeiros efeitos dessa cacetada, Cosme Banhos procurando apunhalar o réu, que lhe havia escapado das mãos, deu uma punhalada que empregou a sua satisfação, e nesse ínterim, Ernesto disse: Companheiro, o cabra matou-me; com o que terminou o rumor”.
Ressalte-se que, a certa altura do Processo, o Juiz escreve serem verossímeis os depoimentos do acusado. Lamenta, entretanto, que ele não seja claro no referente ás causas de sua ida a Lavras, naquele dia.
Relativo ao assunto, como já foi citado, afirmou o Padre Gangan haver-se deslocado da Venda, para fazer um batizado, a convite. Enquanto isto, conforme foi deposto, Raquel, cunhada de Ernesto, proibida por este de ter relações de amizade com o levita, mandou-lhe um bilhete chamando-o urgentemente. Teria ele respondido que iria “de fato a esta Vila para ver se tinha outro pai”.
Realizado o sumário, em que funcionaram como advogados de acusação Dr. Joaquim Pauleta Bastos de Oliveira, Antônio Carlos Augusto, Manuel de Araújo Pinto e Coronel Antônio Joaquim de Sousa Rolim, e de defesa Belisário Cícero Alexandrino e Pe. Teodulfo Franco Pinto Bandeira, o réu foi liberado. Passou, então, o Pe. Gangan a residir na Telha (hoje, Iguatu), exercendo, ali, as funções de Coadjutor.
Na Telha, segundo um ofício do Delegado de Polícia local, foi o sacerdote preso aos 18 de outubro de 1875. Em 12 de junho de 1876, da cadeia onde se achava, enviou ele petição ao Juiz de Lavras, expressando o seu desejo de que o processo fosse apressado, a fim de “responder logo, visto sofrer prisão há muito tempo”, e solicitando ser julgado em Várzea Alegre ou no Icó, “visto como foi o suplicante, por motivo independente de sua vontade, preterido de responder a três sessões sucessivas de júri de Lavras.”
Acatada a sua solicitação, transferiu-se o Padre para a Cadeia Pública da Vila de Várzea Alegre, onde já se encontrava em 17 de outubro de 1876.
(Página dos Autos do Processo Criminal do Padre Joaquim Machado da Silva) |
Aos 20 do mesmo mês e ano, naquela localidade, com a presença do Juiz Municipal Dr. Joaquim de Andrade Fortuna Pessoa, servindo de Juiz de Direito, do Promoto Público Interino Manuel Duarte de Oliveira Tércio, dos advogados de defesa Belisário Cícero Alexandrino e o Pe. José Ferreira da Silva, de cinco testemunhas de acusação e de defesa e dos doze juízes de fato, Antônio da Costa Balada, Herculano Gomes Pereira, Francisco das Chagas Bezerra, Antônio Alves do Nascimento, João Alves Bezerra, Vitorino da costa Vilar, Francisco Carlos de Oliveira e Sá, Pedro Vieira da Costa, Joaquim Alves Bezerra, João Antônio da Costa Vieira, Antônio Bezerra de Menezes e Antônio Francisco Pinto de Mendonça, realizou-se o júri, havendo sido absolvido, por unanimidade, o Pe. Joaquim Machado da Silva.
Em 28 de outubro, o Juiz de Direito interino Joaquim de Andrade Fortuna Pessoa apela da sentença de Várzea Alegre para o Tribunal da Relação em Fortaleza, o qual, em palavras contundentes, manda proceder a novo júri, ordenando, inclusive, que o acusado fosse novamente capturado, o que não aconteceu.
Somente aos 11 de maio de 1883 o Subdelegado de Polícia da Povoação de São Bernardo da Cachoeira, onde vinha o Padre desempenhando o cargo de Coadjutor, comunicou ao Juiz de Lavras que este se apresentara, uma vez que era “processado por crime de homicídio neste termo com o fim de recolher-se à prisão, a fim de ir responder pelo mesmo crime”. Preso em Cachoeira (atual Solonópole), logo depois foi o Pe. Machado recambiado para Telha, e, em seguida, para Lavras, onde o Juiz Municipal da Vila, Mileno de Torres Bandeira, baixou portaria, ordenando ao carcereiro “que recolha o Padre Joaquim Machado e Silva na sala livre da Cadeia Pública ou em um quarto reservado, separado da prisão comum” (...) “o qual foi remetido preso pelo delegado de Polícia da cidade da Telha para responder o júri neste Termo, onde se acha pronunciado”.
Aos 29 do mesmo mês de maio, na Vila das Lavas, precisamente na Casa da Câmara Municipal, presentes o Juiz de Direito da Comarca e Presidente do Tribunal do Juri, Dr. Gustavo Gabriel Coelho de Sampaio, o Promotor Público da mesma Comarca, Gregório Taumaturgo da Silva Pereira, os advogados do réu, Celso Ferreira Lima Verde, Belisário Cícero Alexandrino, Pe. Belarmino José de Sousa e Pe. Antônio Fernandes da Silva, bem como os doze jurados sorteados, Vicente Quaresma de Mendonça, Luís Antônio Marques da Silva Guimarães (Pe. Luis do Calabaço), Vicente de Oliveira Campos, Antônio Felipe Benício, João Pessoa de Araújo, Manuel Antônio Leite, João Nunes de Almeida, José Batista de Sousa, João Casimiro Viana, Joaquim Barbosa Gondim, Manuel Duarte Passoa e José de Sousa Reis, procedeu-se à sessão do júri, do qual, mais uma vez, saiu absolvido, por unanimidade, o Pe. Gangan. E o Juiz mandou passar-lhe o Alvará de Soltura.
Terminava, assim, depois de nove anos e meses do crime, a via-crúcis desse inditoso sacerdote, que pagou por um crime que não cometera. E vem a pelo consignar que a própria viúva da vítima, Ernesto Carlos Augusto pela imprensa da Capital, chegou a proclamar a sua convicção da inocência do Padre.
O Pe. Joaquim Machado da Silva, absolvido, voltou a residir em Cachoeira, atual Solonópole, onde veio a falecer aos 4 de julho de 1889.
Sempre se contou, na Venda e arredores, que os sacerdotes que se fizeram presentes ao julgamento do Pe. Machado, ao se retirarem dali, a cavalo, juntamente com ele, pela estrada da Várzea da Benta, que ligava Lavras ao Icó cumpriram literalmente as palavras do Evangelho. Já fora da Vila de Lavras, apearam-se todos e tirando os sapatos, sacudiram, conjuntamente, o pó que neles se continha contra o lugarejo, em sinal de maldição.
Referências:
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ. (Autos do Processo Criminal de Joaquim Machado da Silva (Pe.) 1874-1875),
CALIXTO JÚNIOR, João Tavares. Venda Grande d'Aurora. Expressão Gráfica, Fortaleza 2012. 300p.
MACEDO, Joaryvar. São Vicente das Lavras. IOCE, Fortaleza, 1984. 124p.